Titãs comemoram 40 anos de estrada com o disco "Olho furta-cor"
Em novo álbum, grupo protesta contra políticos, denuncia estupros no Haiti e homenageia Raul Seixas
Em meados dos anos 1980, os Titãs saíram em turnê no ônibus só para eles. Na estrada, Paulo Miklos pegou o violão e começou a tocar as notas ré e dó sustenido, com estilo parecido ao do tema do filme “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg. Ficou repetindo sem parar. Branco Mello, sentado uma poltrona à frente de Miklos, levantou-se, virou-se para trás, mandou o colega continuar a tocar. E soltou: “Cabeça dinossauro. Cabeça dinossauro. Cabeça, cabeça. Cabeça dinossauro”. E só.
Miklos gostou. Continuou tocando e, com Mello, ficou por minutos e mais minutos repetindo aquilo. Até que, de novo, Branco, teve outra inspiração: “Pança de elefante. Pança de elefante. Pança, pança. Pança de elefante”. Isso deu gás à dupla, já meio entediada com a canção monótona que custava a sair.
Depois da “pança de elefante”, deu um branco. Miklos e Mello prosseguiram com as mesmas duas notas, duas estrofes e, agora, quatro palavras. Até que Arnaldo Antunes, que estava em uma das primeiras poltronas do ônibus tentando dormir, levantou-se, caminhou até os dois e esbravejou: “Espírito de porco. Espírito de porco. Espírito, espírito. Espírito de porco”. Virou as costas e voltou para onde estava.
Miklos e Mello pararam. Em silêncio, olharam um para o outro. Pensaram a mesma coisa: Pronto! temos a música pronta. Mas não era qualquer canção. Surgia ali a faixa-título de um dos álbuns mais famosos da banda Titãs. Na hora de gravar, “pança de elefante” virou “pança de mamute”. Foi a única alteração.
Casos curiosos e engraçados assim são comuns na trajetória da banda, que completa 40 anos em 2022. História que os músicos contam com gosto é a de “Tô cansado”, outra faixa do álbum “Cabeça dinossauro”.
Em uma das viagens ao Rio de Janeiro, na década de 1980, Arnaldo Antunes e Branco Mello foram visitar o músico e amigo Lobão. O trio passou a noite em claro, fazendo não se sabe o quê... Nos shows do projeto “Titãs acústico”, Branco, com um pouco de malícia, dizia que os três ficaram apenas “jogando ping-pong”...
Fato é que, quando voltaram ao hotel, na manhã do dia seguinte, estavam exaustos. Entraram no quarto, e, sem conseguir dormir, pegaram o violão e começaram a compor “Tô cansado”, a música que talvez tenha o sentido mais literal em toda a discografia da banda.
Até 1992, a banda somava oito integrantes. Verdadeira multidão, se comparada a outros grupos de rock. Com essa quantidade de gente – criando canções de alta qualidade poética e melódica, cumpre dizer –, é claro que atritos e hits surgiam aos montes. Contudo, o projeto coletivo dos Titãs sempre superou ressentimentos, mágoas ou vaidades.
“A gente sempre teve firme essa ideia de grupo. Nas brigas para decidir quais músicas entrariam nos álbuns, os fatores que decidiam eram, claro, a qualidade da música e se ela estava de acordo com o que a banda representava, refletindo o espírito dos Titãs, e não de um integrante específico”, afirma o guitarrista Tony Bellotto, agora vocalista.
Devido a isso, reconhece Tony, muitas canções de qualidade acabaram ficando de fora de álbuns da banda. “Mas uma coisa é fato: quando a música é boa, ela se impõe”, ressalta o guitarrista.
Ao longo de quatro décadas, os Titãs alcançaram a glória e acumularam sucessos. Gravaram 29 álbuns, uma ópera rock (projeto até então inédito no Brasil), fizeram o filme-documentário “Titãs – A vida até parece uma festa” e ganharam a biografia homônima, escrita por Hérica Marmo e Luiz André Alzer.
Várias músicas da banda marcaram gerações e são cantadas até hoje, como “Epitáfio”, “Enquanto houver sol”, “Marvin” e “Sonífera ilha”, entre outras.
Com essa trajetória bem-sucedida, os Titãs poderiam muito bem se dedicar somente aos hits do passado. No entanto, ressalta Bellotto, a vontade de se surpreender com o próprio trabalho não deixa a banda se acomodar. Exatamente por isso, eles lançam agora o álbum “Olho furta-cor”, disponível nas plataformas digitais.
Dos integrantes da formação original, lá estão Bellotto (guitarra e vocais), Branco (baixo e vocais) e Sérgio Britto (piano e vocais). Juntaram-se a eles o guitarrista Beto Lee, filho de Rita Lee e Roberto de Carvalho, e o baterista Mário Fabre.
“Nunca encaramos a banda como emprego. Sempre tivemos o gosto de tocar juntos, de compor e de nos surpreender com o que fizermos de novo. Por isso, temos todos esses trabalhos, que, de certa forma, são um pouco diferentes dos anteriores”, afirma Bellotto.
APOCALIPSE, CAOS E RITA LEE
Discos-crônicas do tempo em que se vive. Essa sempre foi uma característica dos lançamentos dos Titãs. Não é diferente em “Olho furta-cor”. Na faixa de abertura, “Apocalipse só”, Branco Mello canta: “O céu/ Espelho do chão/ Fumaça/ Engole avião”/// “Pó e cinza, cinza e pó/ Nó e ruína, ruína e nó”.
Depois do apocalipse titânico vem o “Caos”. Composta por Rita Lee, Beto Lee e Roberto de Carvalho especialmente para o disco da banda, a canção traz versos que refletem o sentimento de muitos brasileiros nos dias de hoje. “Tô pilhado e de saco cheio/ Da excrescência calhorda /Da horda de Vossas Excelências/ Cuspindo no microfone/ Cheirando a enxofre”, diz a letra.
No refrão, surge o espírito rebelde de Rita: “Hay gobierno, soy contra/ Soy contra, soy contra/ Contra el gobierno”.
Outra letra forte é a de “Por galletas”. Escrita em espanhol, a canção trata dos estupros cometidos por soldados da ONU integrantes da missão de paz no Haiti coordenada pelo Exército brasileiro entre 2004 a 2017.
Conforme a imprensa divulgou na época, soldados atraíam mulheres pobres de Porto Príncipe oferecendo garrafas de água e biscoitos. Quando elas se sentiam seguras em companhia deles, o abuso era consumado.
Não se pode dizer, contudo, que “Olho furta-cor” é álbum de protesto. Há também baladas, como “Um mundo” e “Papai e mamãe”, inspiradas em questões intimistas e existenciais.
Sem contar as faixas “São Paulo 3” e “São Paulo 1”, que nasceram a partir de poemas do livro “Entre milênios”, de Haroldo de Campos.
“Foi em uma conversa com o diretor Felipe Hirsch que descobrimos alguns dos poemas de Haroldo. Isso seria para outro projeto que faríamos com o Felipe, mas que acabou não indo para a frente”, revela Bellotto.
Haroldo ficou na cabeça de Sérgio Britto, que compôs “São Paulo”. “Era para ser uma faixa só, com o nome da cidade. Mas depois, quando o Britto foi mostrando a música para a gente, parecia que havia uma música dentro da outra. O jeito foi dividir. Daí 'São Paulo 1', '2' e '3'. Fomos emendando uma parte na outra e não sei onde 'São Paulo 2' foi parar”, conta Bellotto, rindo.
RAUL SEIXAS NA VEIA
O novo álbum faz homenagem a Raul Seixas. Partindo de uma entrevista que o Maluco Beleza deu a Pedro Bial, dizendo que o rock de Elvis Presley tem tudo a ver com o baião de Luiz Gonzaga, os Titãs compuseram a faixa “Raul”.
A canção sugere que há semelhanças entre americanos e nordestinos, comparando Andy Warhol a Mestre Vitalino, Jackson do Pandeiro a Chuck Berry, Bob Dylan a Patativa do Assaré, Bill Haley a Zé do Fole e Johnny Cash a Catulo da Paixão Cearense. No final, os Titãs concluem: “Vai ver que o Mark Twain é o Ariano Suassuna”.
UM TRIO NA MULTIDÃO
No início, a banda Titãs, criada em São Paulo, reunia Arnaldo Antunes, Branco Mello, Ciro Pessoa, Sérgio Britto, Nando Reis, Paulo Miklos, André Jung, Marcelo Fromer e Tony Belloto. Ciro saiu, seguido por Jung, que foi substituído pelo baterista Charles Gavin em 1985. Em 1992, Antunes decidiu seguir carreira solo. Em 2001, Marcelo Fromer morreu, após ser atropelado em São Paulo. No ano seguinte, Nando Reis deixou o grupo, também rumo à carreira solo. Em 2010, foi a vez de Charles Gavin e, em 2016, de Paulo Miklos. Quarenta anos depois, Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Belloto seguem na pista.
Veja o clipe da música “Caos”, composta por Rita Lee, Beto Lee e Roberto de Carvalho especialmente para o novo disco da banda: