Leite de ‘saquinho’ está de volta, com apelo ambiental e preço menor
Com nova tecnologia na embalagem, produto pode durar até 10 dias; em Passos, ele foi lançado em 1971
Até meados da década de 90, quem consumia leite tinha de comprar os famosos leite C ou B no saquinho. Eles azedavam rápido e precisavam ser fervidos antes de beber. Com o surgimento da embalagem cartonada – também chamada de longa vida, na caixinha – os saquinhos foram desaparecendo e quase sumiram. Em Passos ficou famoso o leite “Radar”, lançado pela Cooperativa Agropecuária do Sudoeste Mineiro (Casmil) em outubro de 1971.
Mas nos últimos anos o leite em saquinho vem ensaiando, devagarzinho, uma volta. Supermercados da classe “A” de São Paulo, como o Mambo e a rede Zaffari, voltaram a vender o leite de saquinho refrigerado, em embalagens de 1 litro. Tem até uma novidade. A Leitíssimo, do Grupo Leite Verde, lançou um leite em saquinho que não precisa de refrigeração, é UHT (passa pelo processo de altas temperaturas).
“Esse leite do saquinho de agora é bem diferente daquele do passado”, explica o vice-presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite), Roberto Jank Júnior. Ele não tem mais a classificação A ou B. É apenas leite pasteurizado, natural, sem aditivos. A validade, desde que mantida a refrigeração, chega a dez dias e não precisa ser fervido. “Antigamente, o manejo e a captação do leite tinham menos cuidado. Hoje há muitas melhorias e a entrega não é mais feita em caixas de isopor. A cadeia logística é toda refrigerada. Por isso a validade se estendeu e a qualidade aumentou”, explica.
Mesmo assim, a garrafa plástica é bem mais prática que o saquinho molenga em que é vendido. Por que, então, o saquinho está de volta? Preço e sustentabilidade explicam esse ponto. Para o produtor, a garrafa plástica custa quase R$ 1 e o saquinho fica em R$ 0,04. Isso faz o preço do leite refrigerado, na gôndola, ficar pelo menos R$ 1 mais barato que o engarrafado.
MENOS PLÁSTICO
“Além de ser mais barato, é bem menos plástico do que a gente acaba descartando”, explica a consumidora paulistana Maria Guimarães. “Eu faço o máximo que posso para não consumir plástico: compro xampu em barra, cosméticos em vidro. Com o leite, a única solução que achei foi reduzir da garrafa para o saquinho”, afirma ela. Craig Bell, gerente na Leitíssimo, concorda. Foi por isso, segundo ele, que a empresa lançou o UHT em saquinho. “O lixo gerado é menor com o uso da embalagem em sachê, que usa 75% menos plástico que a garrafa. Consequentemente, o custo do produto diminui também”, diz ele.
NO EXTERIOR
Esse movimento de volta ao saquinho já aconteceu na Europa e nos Estados Unidos, quando a troca começou a ser feita por volta de 2010. E foi isso o que motivou a pesquisa da professora Mary Anne White, da Universidade de Dalhousie, na província da Nova Escócia, no Canadá. Ela analisou a quantidade de plástico em cada embalagem e também a geração de carbono na linha de produção de cada uma delas, num estudo de 2021.
Na comparação com as embalagens longa vida e com as garrafas plásticas, o saquinho sai ganhando. Por litro, os sacos de leite requerem menos energia e água em sua produção e geram menos gases de efeito estufa do que as garrafas e as caixinhas. Isso acontece principalmente porque eles pesam de 20% a 30% que uma garrafa ou caixa de leite, para o mesmo volume (um litro de leite). As embalagens cartonadas, por exemplo, precisam de uma quantidade extrema de água em sua produção: são quase 20 litros de água para produzir a caixinha de um litro de leite, segundo a pesquisadora.
Os pequenos produtores de leite também comemoram essa volta do saquinho. Eduardo Capodifoglio, diretor técnico da Leites Jamava, de Santa Cruz da Conceição, no interior de São Paulo, diz que sua produção vendida em saquinhos passou de 5 mil unidades por dia para 25 mil em cinco anos. “A padaria, o supermercado, que já compravam, mantiveram a demanda estável. Mas, para nós, aumentou o número de pontos de venda. Estamos chegando a supermercados que antes não vendiam o saquinho”, diz ele. Com transporte refrigerado apropriado, ele consegue entregar o leite num raio de 500 quilômetros de seu laticínio.
Em Andradina (SP), a Cooperativa de Produção Agropecuária dos Assentados e Pequenos Produtores da Região Noroeste do Estado de São Paulo, Coapar, também está aproveitando para vender mais. Com um ano e oito meses de atuação no mercado, a empresa vende o leite de saquinho em 80 pontos comerciais, muitos deles na capital de São Paulo. “Todo mundo achava que o saquinho ia sumir, mas ele está aí, cada dia mais ganhando mercado”, comemora Lourival Plácido de Paula, vice-presidente e gerente comercial da Coapar.
Um dos pontos de venda do leite da Coapar em São Paulo é o Instituto Baru, no Jardim Bonfiglioli. Especializado em produtos orgânicos, as vendas de leite em saquinho lá cresceram de 20% a 30% no último ano. “Além de ter uma embalagem que promove menos descarte de plástico, o leite é muito bom e por isso as vendas vêm crescendo”, diz Janciander Goulart, um dos associados do Instituto Baru.
PRECONCEITO COM A EMBALAGEM
Desengonçado, o saquinho acabou aumentando também as vendas de jarrinhas que servem de “porta leite”, para serem usadas na hora de servir. Na Shopee, um dos maiores marketplaces em operação no Brasil, as vendas de “porta leite de saquinho” tiveram um aumento em unidades de 20% em 2023, segundo a empresa.
Mas, mesmo assim, ainda há muita gente que torce o nariz para a embalagem, diz Roberto Jank Júnior, da Abraleite. “Em cidade menores, no interior, ele é conhecido. Mas aqui as pessoas acham que ainda é aquele leite C, ruim”, diz ele.
É o que acontecia com a especialista em comunicação corporativa Andreia Motta, moradora da Vila Mariana. “Eu não sabia que era igual ao da garrafinha” diz ela. “Agora que sei, vou comprar mais porque também quero economizar e diminuir a quantidade de plástico que consumo, diz ela, que compra leite para consumo próprio, do marido e dos três filhos de três, seis e oito ano.
Outro fator que ajuda na volta do saquinho é o saudosismo, diz Eduardo Tomiya, presidente da TM20 Branding. “As pessoas estão cansadas de tanta tecnologia, de tanta mudança. Quando o saquinho volta, desperta uma saudade e isso também facilita a venda”, diz ele.
Primeira embalagem do leite pasteurizado Radar, que começou a ser distribuído em outubro de 1971 (Reprodução)
O SURGIMENTO EM PASSOS
Até 1969 era comum em Passos a venda do leite in natura para a população. Em carroças, o produto era oferecido em latões, em que o vendedor mergulhava o canecão no latão e o entregava para os consumidores; o leite era fervido nos fogões “até subir”, antes do consumo. Mas um decreto do então prefeito Antonio Pedro Patti, de julho de 1971, “em obediência ao Decreto Lei número 923, do Governo Federal, foi proibida a venda de leite cru para o consumo direto da população em todo o território nacional”. Pelo decreto, a partir do dia 20 de agosto de 1971 a população seria servida pelo leite pasteurizado.
Para atender a determinação, a Cooperativa foi autorizada pela assembleia de seus associados a contrair um empréstimo junto ao Banco de Crédito Real de Minas Gerais para comprar o equipamento de pasteurização e empacotamento do leite. No dia 25 de outubro de 1971 foi lançado o Leite Radar, em saquinho, produzido em parceria com uma empresa paulista, a Milu.