BBC elege as 100 melhores histórias já contadas e uma delas é de autor brasileiro
Rede britânica de televisão fez uma pesquisa nos últimos meses com vários escritores de todo o mundo para elaborar um ranking
Qual é a melhor história já contada? Esta foi a pergunta que a rede britânica de televisão “BBC” fez nos últimos meses para vários escritores de todo o mundo para compilar em uma lista com as cem melhores. Mais de 108 experts de 35 países participaram do levantamento, entre autores, acadêmicos, críticos literários e tradutores, e o resultado é um ranking preliminar com textos em 33 línguas, sendo que a versão final vai render uma série documental sem data de estreia definida.
Por enquanto, a primeira posição ficou com o poema “Odisseia”, de Homero, publicado no século 8 a.C. O Top 10 é composto ainda por “A Cabana do Pai Tomás” (de Harriet Beecher Stowe, publicado em 1852), “Frankenstein”, de Mary Shelley (1852), “1984”, de George Orwell (1949), “O Mundo se Despedaça”, de Chinua Achebe (1958), “Mil e Uma Noites”, trabalho de vários autores, publicado entre os séculos 8 e 18, “Don Quixote”, de Miguel de Cervantes (1605-1615), “Hamlet”, de William Shakeaspeare (1603), “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez (1967) e “Ilíada”, de Homero (século 8 a.C.).
Apenas um escritor brasileiro aparece na lista: Machado de Assis, na 60ª posição, graças ao clássico “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Já os escritores mais populares de maneira geral são Shakeaspeare, Virginia Woolf e Franz Kafta, com três livros entre os mais fascinantes cada um. Autora da saga Harry Potter e tida como a escritora mais rica do mundo, J.K. Rowling conquistou a 15ª posição com suas aventuras sobre o menino bruxo que a transformaram em bilionária.
Mas a escritora viva mais bem colocada é a americana Toni Morrison, de 87 anos, cujo drama “Amada”, de 1987, deu início a uma trilogia que lhe rendeu um prêmio Pulitzer de Melhor História de Ficção. Para o “The New York Times” trata-se da melhor história dos últimos 31 anos, que curiosamente não fez tanto sucesso quanto a obra original no cinema: estrelada por Oprah Winfrey em 1998, sua adaptação para a telona é considerada um dos poucos fiascos da carreira da apresentadora, ela própria uma das figuras mais influentes do mercado editorial mundial, capaz de transformar qualquer livro em best-seller apenas por citá-lo.
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
A indispensável obra de Machado de Assis narra a história de Brás Cubas, um homem rico e solteiro que, depois de morto, resolve se dedicar à tarefa de narrar sua própria vida. Dessa perspectiva, emite opiniões sem se preocupar com o julgamento que os vivos podem fazer dele. De sua infância, registra apenas o contato com um colega de escola, Quincas Borba, e o comportamento de menino endiabrado, que o fazia maltratar o escravo Prudêncio e atrapalhar os amores adúlteros de uma amiga da família, D. Eusébia. Da juventude, resgata o envolvimento com uma prostituta de luxo, Marcela.
Depois de retornar de uma temporada de estudos na Europa, vive uma existência de moço rico, despreocupado e fútil. Conhece a filha de D. Eusébia, Eugênia, e a despreza por ser manca. Envolve-se com Virgília, uma namorada da juventude, agora casada com o político Lobo Neves. O adultério dura muitos anos e se desfaz de maneira fria. Brás ainda se aproxima de Nhã Loló, parenta de seu cunhado Cotrim, mas a morte da moça interrompe o projeto de casamento.
Desse ponto até o fim da vida, Brás se dedica à carreira política, que exerce sem talento, e a ações beneficentes, que pratica sem nenhuma paixão. O balanço final, tão melancólico quanto a própria existência, arremata a narrativa de forma pessimista: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
SOBRE O AUTOR
Machado de Assis é considerado um dos mais importantes escritores da literatura nacional. Primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, foi também um dos fundadores. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado apresenta um estilo novo, rompendo com a tradicional narração linear e dando início ao realismo brasileiro. Os críticos da época perceberam que a narrativa apresentou elementos modernistas e de realismo mágico. Na obra, o narrador suspende seu relato para desenvolver reflexões paralelas a ele. Outras obras importantes do escritor são: “Dom Casmurro” e “Quincas Borbas”.
A publicação desse romance, em 1881, é precedida pela formato em folhetim da obra, publicado na “Revista Brasileira” entre março e dezembro de 1880. Memórias Póstumas de Brás Cubas é o marco inaugural do realismo no Brasil. Como fica explícito no título, quem narra as memórias já está morto, o que estabelece um diálogo crítico com a estética realista. Noções como verdade, ciência e razão são colocadas em discussão e relativizadas por Brás Cubas. O narrador vê o mundo com ceticismo e desprezo e, dirigindo sua crítica ao gênero humano, transforma o próprio leitor em uma das vítimas das ironias do livro.
A ação do romance abarca a segunda metade do século XIX, período que corresponde ao governo de D. Pedro II. A juventude de Brás coincide com a Independência do Brasil, em 1822. Assim, sua chegada à idade adulta pode simbolizar a maturidade social brasileira.
ANÁLISE
Memórias póstumas de Brás Cubas se enquadra no gênero literário conhecido como sátira menipéia, no qual um morto se dirige aos vivos para criticar a sociedade humana. É exatamente o que faz o narrador, ao contar a história de sua vida após o próprio falecimento. A leitura do romance deve levar em conta a dupla condição do protagonista: há o Brás vivo e o Brás morto. Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas.
O Brás vivo é personagem da narrativa e vive uma existência marcada pelas futilidades sociais, pela volubilidade sentimental e pelo desprezo que manifesta pelos outros. O Brás morto é o narrador, que é capaz de expor sem nenhum pudor os próprios defeitos. Em primeiro lugar, porque já está morto e não pode mais ser atingido pela ira de seus contemporâneos. Em segundo, porque a condição em que está lhe dá a sabedoria necessária para perceber que seu modo de agir é semelhante ao de todos os seres humanos.
A sociedade é caracterizada como o espaço do jogo entre aparência e essência, onde as pessoas interpretam papéis e fingem ser o que realmente não são. A impossibilidade de conhecer as profundezas da alma não impede o narrador de reconhecer a miséria moral da humanidade.
Essa descoberta é sustentada sem problemas pelo Brás vivo, embasado na filosofia do humanitismo, que afirma que toda atitude humana, boa ou má, é justificável como um ato de preservação da espécie. O Brás morto, de sua parte, é capaz de olhar com ceticismo a própria teoria, chegando a uma conclusão que nada tem de otimista: por ele, a espécie humana termina ali, já que não deixa herdeiros da “nossa miséria”.